quinta-feira, 5 de maio de 2011

Meus [teus] erros

- Oi! - tentou ele, com uma voz tímida, quase inaudível àquele par de orelhas com brincos minúsculos. Ela disfarçou seus movimentos com exatidão e pôs-se firme ao mirar um ponto fixo inexistente no meio daquele ônibus vazio.

- Posso me sentar? - insistiu ele, não surpreso com a feição inexpressiva que foi desenhada naquele rosto de tez alva. Seus pensamentos sussurravam aos ouvidos palavras doces, e a faziam reviver todas aquelas lembranças de quatro anos em milésimos de segundos. Ela quis titubear, mas se manteve concentrada.

Durante os dias de inverno, Maria Flor arrumava as roupas de cama pacientemente, de forma suave, como se estivesse ouvindo uma Bossa Nova embalando sua manhã gélida. Nesta alvorada, sentindo-se trêmula por causa do frio, ela abriu seu armário, e escolheu. Por instinto, puxou seu cachecol rosa e branco xadrez e um casaco preto que usara apenas em certos dias de outono. Dirigiu-se ao banheiro, a fim de pentear seus fios sedosos e pretos, e esbarrou num porta-retrato em meio a pia. Ao colocá-lo de pé novamente, seu coração pulsou. Nunca o tirara dali. Ela ignorava aquela foto, todos os dias, na mesma hora, antes de ir ao trabalho, como parte de um treinamento peculiar. E, agora, a foto ganhou vida uma outra vez, fazendo seu coração acelerar-se. - Bê! - pensou ela, e pôs-se a chorar em um instante, e no outro, já tinha olhos secos e seu cabelo arrumado. Ela levou consigo a foto. E saiu de casa.


 - Por favor? - caguejou ele, desacreditado, sentindo-se um idiota qualquer. De repente e minusciosamente, Maria tirou sua bolsa de listras verdes do banco ao lado, permitindo-o sentar-se juntamente a ela. E, ela, nada o disse.

Ele se sentou ao lado dela, e um silêncio mesclou-se com o ar rarefeito que ambos criaram.

- Está frio, tu não achas, Flor? - continuou ele, inquieto, em um tentativa de quebrar a mudez.

Ela assentiu e deu de ombros.

- Tu estás indo ao trabalho? - persistiu ele, incrédulo de uma resposta falada.

Ela assentiu e pôs os fones de ouvido. Na cabeça dele, foi criado um novelo de perguntas à toa. Perguntas sobre o dia, sobre os pais, sobre o freddy, o cachorrinho vira-lata que ela adotara, sobre qualquer coisa. Numa tentativa de dizer qualquer uma delas, ele soltou:

 - Tu não me amas mais.

Ele se surpreendeu com suas palavras, e quis desejar não ter saído de casa. Os dois corações, agora, batiam na mesma frequência, com infinitas batidas por segundo. Ele sentiu o corpo tremer, não mais pelo frio, pelo calor de suas palavras, sua boca ficou ressecada, sentiu a adrenalina correr em suas veias, suas pernas andavam, desandavam paradas e estacavam trêmulas. Ela continuou firme, olhando para o mesmo ponto fixo, mas, agora, seu coração palpitava, e suas pálpebras iniciaram uma movimento de abrir e fechar, embaladas pelos cílios. Viam-se gotas esvaindo-se de seus olhos, via-se choro. Choro mudo.

- Tu não gostas mais de mim? - consertou ele. Indagou-se se o que havia dito era o mais correto a dizer, mas de nada adiantara seus questionamentos internos, seu corpo e suas palavras tinham vontades próprias, ele era apenas o reflexo de seus sentimentos.

O choro de Flor ganhou forças, e agora pequenos soluços eram perceptíveis a ele.

- Andes, fales tu, Flor, acabes com esta agonia dentro de mim - choramingou ele, que continha olhos marejados. Maria Flor tentou concentrar-se novamente, enraivecida pela forma em que seu corpo respondera a indagação dele. Lembrou de todos seus esforços passados, deixou sua mão ir ao encontro de seus olhos, e continuou a fitar o mesmo ponto. Ela olhava um coração desenhado no vidro do trocador, e, agora anestesiada pelas perguntas dele, conseguiu identificar o desenho. Voltou ao seu choro mudo.

- Flor, tu não tens idéia do quanto quis relevar-te que estou arrependido, e é quando fecho os olhos pela noite que este sentimento torna-se pleno e acompanha-me, juntamente com a solidão, na hora de dormir. Eu, que sempre fui um imaturo na arte de amar, reconheço que também fui negligente. Meu amor é grandioso. E é teu. E é nosso, é tudo nosso. Posso ter me esquecido de ligar as noites de outono a ti, posso ter te visto pouco, te visto muito pouco e, ainda sim, te amei. Única e exclusivamente. Em meio as guerras que travo em mim, posso consagrar-te vencedora.

Maria Flor era cachoeira viva. Não conseguia se controlar, de nada adiantou suas prévias deste encontro. Não dissimulou indiferença, como havia receitado. Não se manteve inerte, como tentou no princípio. Não se manteve muda, como planejou.

- Tu sabes do apreço que tenho por ti, Bernardo. E por eu também saber, e não estar disposta a encarar toda esta sua inconstância, que eu decidi, não por impulso, matar-te todos os dias, durante todos os meus dias. Tu sempre me foste dúvida, esta é minha maior certeza. Não vou negar que não penso em ti, pois penso. E ensaidamente defronte ao espelho, faço caras e bocas tentando achar a mais indiferente possível para te mostrar quando, pelo acaso, reencontrares tu. Achei meu vazio facial. E foi este que fiz tão bem com outros tantos que entraram neste ônibus, e passaram por aquela roleta. Mas hoje, tu me pegaste de guarda baixa, Bernardo. Pela manhã, vi uma coisa que me enfraqueceu, logo hoje... Tu sabes bem que ainda sei onde tu moras. E, te encontrar por estas ruas, não seria tanta coincidência assim. Por isto, ensaio. Tu tens que lidar com o reflexo de que tu fazias comigo. Mas, sou fraca, e por esta fraqueza, tu me ganhas sempre. Sou vencedora de tuas guerras, como tu disseste, mas não sou a vitoriosa. Tu mexes comigo, Bernardo. Tu tens um jeito só seu de afagar meu rosto cansado, e alimentar meus sonhos descansados. Tu sempre me foste encanto, desejo, mas tu fazias questão de me ser saudade. Eu digo a ti, te amei, e talvez, ainda te ame, mas algo mudou, a vontade de seguir a te amar cessou-se. E, agora, tu me és ferida, cicatrizada -  aliviou-se ela, entre pausas e afirmações, choros e soluços.

A face de Bernardo estava em choque, ele que tanto quis saber sobre o que ela sentia por ele, agora, quis não ter se deixado perguntar nada. A dúvida é mais doce que a certeza que machuca, é amarga. E ele conseguira interpretar tudo o que ela acabara de dizer a ele, porque ele já o tinha ponderado. Em poucos instantes após os ditos de Flor, Bernardo permitiu-se chorar. Um choro de um homem que ama, sem soluços, sem contestações, sem mágoas. Um choro de amor, como se estivesse deixando-o transbordar pelos seus olhos que, mesmo com tanta surpresa, seguiam admirar aquela menina de alma sensível e doce. Ele não quis feri-la mais, aquietou-se.

Ela avistou o ponto onde iria soltar, e pôs-se de pé, puxando a cigarra do ônibus, que tinha, agora, umas seis ou sete pessoas de olhos esbugalhados após serem platéia de todo esta conversa. Entre o ato de levantar a mão e puxar a cigarra, sem ela perceber, algo caiu de sua bolsa enquanto o ônibus acelerava. Ao dirigir-se à porta, ela disse um tchau silenciado ao Bernardo, e assim que o ônibus parou, ela saltou.

Ao olhar Maria Flor descendo do ônibus, Bernardo reparou que no caminho havia algum tipo de papel retangular no chão, e pôs-se a pegá-lo. E havia nele escrito à lápis:

"Hoje sua saudade doeu mais em mim, num simples pentear de cabelo, a vida fez com que eu relembrasse você. Acho que cheguei a chorar, mas foi tão rápido que meu rosto não ficou com alguma trilha de lágrima corrente. Fico ensaiando palavras a te dizer. E, quando mais eu faço isso, mais eu aperfeiçoo as últimas que lhe diria caso te encontrasse. Diria a ti que tu agora és ferida cicatrizada. Quando, na verdade, tu és minha maior esperança, uma esperança acalmada. E és amor, meu amor"

Bernardo virou o papel retangular, e descobriu que se tratava de uma foto. Uma foto que lá congelava o momento em que ele a pedia em noivado, e ela, num momento de felicidade eterna, aceitara. Ele seguiu sua viagem com uma felicidade de encher corações vazios, e leu o que tinha atrás da foto para todos do ônibus que acompanhavam. Ouviram-se aplausos. Ele decidira reconquistá-la todos os dias, na mesma hora, no mesmo ônibus, com o mesmo amor.

Maria Flor chegara em seu trabalho, ficou defronte ao computador, e da bolsa tirou seus utensílios. Ao vasculhar, sentiu falta da foto. E acreditou ter perdido no caminho de casa à rua. Entristeceu-se, mas sabia que tinha uma cópia em casa. Quando foi pegar mais uma caneta dentro da bolsa, percebera que lá havia uma Rosa Vermelha, uma flor. Seguida de um versinho:

"Tu és minha salvação, meu coração.
Tu tens brilho, sentimentos e emoção.
Tu és minha flor, meu calor, meu amor.
Eu sou teu e tu és minha, minha Maria Flor"

E ela, externou todo o seu amor, em um único choro.
E este choro dizia: eu amo você, bê.

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